terça-feira, 14 de outubro de 2008

Da ironia

É bom não a confundir com comicidade. Cômico é quando descubro fraquezas no forte. Por exemplo: quando Napoleão cai do cavalo. Irônico é quando descubro que o forte é fraco. Por exemplo: que Napoleão perdeu em Waterloo, justamente quando pensava que ganhava a batalha. Por isto, o cômico é banal, descobre o que todos já sabem. Mas o irônico pode não ser banal, ele descobre o ignorado. E dizer que a humanidade é cômica, é dizer besteira - porque todo mundo sabe disto. Mas falar em ironia do destino, embora seja chavão, não é necessariamente besteira - porque a descoberta é sempre penosa.

Ironia é método retórico, é uma maneira de falar sobre coisas. Em grego significa: "falar disfarçado". Existe a ironia "barata", é quando disfarçamos sem necessidade, ou para enganar os que nos ouvem. A ironia "barata" é método caro à demagogia. Mas existe também um certo tipo de ironia tão cara, que pode custar os olhos da cara. Não é fácil a distinção entre os dois tipos. Exige ouvido atento.

O chamado "segundo romantismo" recorre muito à ironia. Trata-se daquela geração de burgueses europeus, contemporâneos da Restauração do reino francês e da Santa Aliança em Viena. A ironia romântica mostra bem como o método funciona: faca de dois gumes. Faca, embora sacada por românticos e brandida romanticamente, que corta o romantismo em pedaços. Morte do romantismo. A ironia talvez seja sempre isto: arma empregada naquela batalha chamada "agonia".

Prova ainda melhor fornece a auto-ironia. O fraco, para defender-se do forte, corta-se, ironicamente em pedaços. Talvez para mostrar ao forte o quanto é fraco ao oprimir o fraco. Exemplo outro é a ironia judia nos tempos do nazismo: "Barco a remo judeu afunda cruzador alemão", e "pastor alemão mordido por agiota judeu". São tais as situações que geram ironia como arma para a agonia. Ironia não apenas arma dos fracos, mas ainda arma dos que vão morrer, seja em câmaras de gás, seja nos circos. A famosa palma esticada dos gladiadores ao saudarem o Imperador: "os morredouros Tesaudam!". Suprema ironia.

E, no entanto, arma que pode ser libertadora. Já que pode mostrar não apenas o quanto o forte é fraco, mas também o quanto é forte o fraco. Outro aspecto da ambivalência da ironia. Um poeta tcheco diz isto: "Povo nenhum ainda morreu, enquanto poetas lhe cantam.". (Suponho que tal poeta não está sendo atualmente editado em muitos exemplares em Praga). Parafraseando: "Povo nenhum ainda morreu, enquanto tem piadas". O espírito sopra aonde quer, e também na ironia.

Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" 26/02/1972

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