terça-feira, 14 de outubro de 2008

Do futuro

A nossa geração tem uma vivência do tempo que difere fundamentalmente da do século passado, o difícil é dizer em que ela difere. Esta dificuldade está no fato de não dispormos de conceitos para articular a vivência nova. Em outras palavras: vivemos em um plano, e pensamos em outro. Os nossos conceitos, (em grande parte herança do século passado), não conseguem captar a nossa vivência, e nossa vivência (em grande parte sem paralelo na história), não consegue articular-se. Este divórcio entre pensamento e vida abre dois horizontes igualmente perniciosos: o do antiintelectualismo imediatista, (exemplificado pelo hippie), e o do intelectualismo estéril, (exemplificado nos os vários formalismos e as várias ortodoxias). O desafio se dá no referente ao reformular de conceitos, em abandonar uns e criar outros. Em suma: alterar o repertório do pensamento, e obviamente, um dos primeiros conceitos a serem reformulados é o conceito de tempo.

Não é tarefa fácil porque, embora exista um divórcio entre o nosso conceito e a nossa vivência do tempo, existe também um "feed-back" entre ambos. Ou seja, embora o nosso conceito de tempo não capte a nossa vivência, perturba-a e falsifica-a. Conseqüentemente, nossa vivência do tempo se não ao nosso conceito, procura adequar-se. Assim o conceito cristalizado modela e freia a vivência, e mascara o divórcio fundamental entre ambos. Esta relação entre conceito e vivência, na qual o conceito é relativamente fixo e a vivência relativamente fluída, não é sempre o caso. Havia épocas caracterizadas pela relação inversa, nas quais conceitos explosivos revolucionavam vivências estagnadas. Com efeito, nossa situação de conceitos "reacionários", e vivências "progressistas" é relativamente rara. Daí a dificuldade da nossa tarefa, pois é difícil admitir que os nossos pensadores (cientistas, artistas, filósofos) não representam a vanguarda, mas a retroguarda dos acontecimentos. (Obviamente, os conceitos "reação" e "progresso", aos quais recorri, fazem parte do repertório cristalizado do pensamento. A necessidade que temos em recorrer a eles ilustra a dificuldade da nossa tarefa).

Mas existem acontecimentos privilegiados que ilustram, quais relâmpagos, nossa situação e tarefa. Um destes acontecimentos é o vôo do Apollo 8, nele há o divórcio entre um aspecto do nosso conceito e da nossa vivência do tempo, a saber: o aspecto "futuro". O propósito do presente artigo é tentar utilizar-se da luz desse relâmpago para alcançar uma visão da nossa cena, por fugaz que seja. Para tanto procurarei primeiro captar o "futuro" que Apollo 8 aponta, e que seria "futuro" nos sentido conceitual do termo "tempo". Em seguida procurarei mostrar o divórcio entre esse "futuro" e o "futuro" que vivenciamos. No decorrer da exposição espero poder tornar mais evidente, qual é o nosso conceito do tempo, e porque é necessário reformulá-lo.

Comparem o vôo do Apollo 8, (não com a viagem de Colombo, como sugerem os jornais), mas como uma viagem de São Paulo a Santos pela Via Anchieta. (Sugiro que a comparação revelará duas diferenças: (1o) a viagem do Apollo 8 se dá em paisagem menos vivenciada, e 2º) ela se dá em paisagem mais concebida. Já que os jornais salientam a primeira diferença, permitam que saliente a segunda. A paisagem percorrida por Apollo 8 é quase ideal para o funcionamento dos computadores e dessa nova ciência chamada "futuráveis". Isto significa que nela prevalecem algumas poucas influências ponderáveis (por exemplo, o campo gravitacional da Terra, da Lua, do Sol, de Vênus, e as várias forças dos foguetes), e algumas poucas influências menos ponderáveis, mas secundárias e quase desprezíveis, (por exemplo, os ventos na atmosfera a ser percorrida, o resfriado de Borman, os estados psíquicos dos astronautas). Em tal paisagem altamente previsível, as surpresas são poucos prováveis. Mas dizer que algo é previsível é dizer que foi previsto, se, pois, a paisagem percorrida por Apollo 8 é uma paisagem do futuro, no sentido de pouco ou não vivenciada, ela é uma paisagem do passado, no sentido de concebida e relativa isenta de surpresas. Estamos diante de dois sentidos diferentes do termo "futuro".

A paisagem percorrida na viagem de São Paulo para Santos é diferente. Presta-se menos a computadores e é menos "futurável". As influências ponderáveis são muito mais numerosas, (por exemplo, além da estrada e do automóvel, também o estado da pista, dos pneus, da gasolina etc. etc), as influências secundárias são inúmeras e praticamente imponderáveis, portanto, menos desprezíveis, (por exemplo, o clima, um cachorro na pista, um encontro com amigos, um copo de cerveja a mais, etc. etc.). Em tal paisagem altamente imprevisível, as surpresas são prováveis. Querer programar uma viagem a Santos com computador, e querer "futurá-la", é querer alterar-lhe a própria essência, que é de aventura. A paisagem percorrida na viagem a Santos é uma paisagem do passado, no sentido de muitas vezes vivenciada, mas é uma viagem do futuro, no sentido de potencialmente surpreendente. Estamos diante dos mesmos dois sentidos do termo "futuro". A viagem de Colombo passa por paisagem ainda menos vivenciada por aquela percorrida por Apollo 8, e ainda menos previsível que aquela percorrida pela Via Anchieta. É uma paisagem do futuro em ambos os sentidos do termo, e nela, portanto, o divórcio dos dois sentidos não aparece.

O nosso conceito de tempo faz com que tentemos transformar todas as paisagens do tipo "Via Anchieta" em paisagem do tipo "Apollo 8", tornando todas as paisagens "futuráveis". Tanto físicas quanto biológicas, tanto psicológicas quanto econômicas, tanto políticas quanto artísticas, tanto éticas quanto religiosas. (A ordem pela qual numerei as paisagens corresponde aproximadamente à ordem pela qual a futuração progride). A meta é eliminar das paisagens as influências imponderáveis e incomputáveis. O método é duplo: uma influência imponderável pode ou ser transformada em ponderável pela sua análise e decomposição em influências ponderáveis, ou, se isto não for possível, pode ser desprezada provisoriamente.

Este desprezo provisório pode ser ponderado, ele próprio, na computação como margem de erro prevista. É perfeitamente previsível que a margem de erros prevista tenderá a diminuir, na medida na qual aumenta a futuração de várias paisagens, e na medida na qual haverá uma integração das várias paisagens. Desta forma serão eliminadas surpresas, (catástrofes), do futuro, e o futuro estará aberto, pelo menos num dos dois sentidos do termo "futuro" mencionados.

Claro que nada disto é novo, inteligência significa, pelo menos em parte, previsão do futuro, ("futuração"), e a ciência, que nada mais é senão inteligência disciplinada significa, pelo menos em parte, "futuração" disciplinada. De modo que a futuração é tão antiga quanto o é a humanidade, (senão mais antiga ainda), e disciplinou-se pelo menos a partir do Renascimento. Há, no entanto, um elemento novo em tudo isto. É a sensação de que a futuração, (que é a previsão inteligente do futuro), aniquila o futuro, e que, na medida na qual ela progrida, deixamos de ter futuro neste segundo sentido do termo. De forma que esta sensação pode ser diagnosticada como o divórcio entre o nosso conceito e a nossa vivência do tempo; o intelectualismo como um agarrar-se a futuração, e o antiintelectualismo como uma recusa a futuração e busca de uma catástrofe imprevisível.

O conceito de tempo, dentro do qual se dá a futuração, tem a ver com um fluxo "objetivo" de acontecimentos, fluxo esse que se dirige do passado para o futuro, e passa por um ponto imaginário chamado "presente". Esse fluxo é "objetivo" no sentido de ordenado por regras apriorísticas como, por exemplo, a entropia. São estas regras extratemporais que tornam a futuração possível, de forma que ela se dê em algum ponto fora do tempo, aquele lugar medieval, com efeito, no qual, ("para Deus"), futuro e passado se confundem. A vivência do tempo, onde se dá a recusa à futuração, tem a ver com a experiência do homem como presença que se lança contra o futuro para transformá-lo em passado. É marcada, como toda vivência, pela subjetividade. E por um empirismo negador de todo apriorismo. Para este empirismo subjetivo a futuração aniquila o futuro, porque elimina o terreno da experiência imprevisível, eliminando o sentido da vida.

Obviamente há algo profundamente errado nas duas posições elaboradas, um tanto exageradamente, neste artigo. E o erro está no divórcio entre ambas. Do lado da futuração, o erro está na desexistencialização do conceito de tempo. E no fato de ser uma situação futurável ser isenta de valores. Do lado do neo-empirismo hippie o erro está na consideração que não pode haver um lançamento contra o futuro, aonde não há previsão, pelo menos parcial, das potencialidades. Mas apontar o erro é muito mais fácil que saná-lo. Urge reformular o conceito de tempo, para torná-lo mais vivenciável, e evitar uma queda na barbárie anárquica do abandono da previsão inteligente. Mas como fazer essa reformulação, eis o problema. Dizer apenas que é preciso exorcizar o conceito de tempo não basta. Para que haja futuro, e não apenas progresso, para que haja sentido na vida, e não apenas viagens à Lua. É preciso de algo mais radical, a saber: uma reformulação de conceitos. Desconfio muito que essa reformulação tem algo a ver com a nossa capacidade religiosa, ou com aquilo que se chama "religiosidade" no repertório cristalizado do nosso pensamento. Seria necessário reformular esse conceito antes de reformular o restante, inclusive o conceito de tempo? E com esta pergunta perplexa, encerro este discurso rumo ao território do futuro.

Publicado originalmente em "O Estado de São Paulo", Suplemento literário 1/02/69

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