terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dos primos-irmãos

Somos todos irmãos e filhos do mesmo Pai que está no Céu. (Assim pelo menos o afirmam muitas religiões e Schiller naquela Ode que passou a Hino do Mercado Comum Europeu.). Que significa isto? Que todos temos a mesma origem biológica no passado longínquo? Que sou "irmão" não apenas do samoiedo que caça renas na Sibéria e do berbere que caça pulgas no Saara, mas também da vaca cuja carne como e do mosquito que me pica enquanto escrevo isto? Não, decididamente, assim não serve para sustentar o nobre sentimento expresso na sentença acima.

Não escolhi a família em cujo seio nasci, não fui sequer consultado. Nenhuma quantidade de ufanismo pode mudar este fato. É claro: posso dizer que me orgulho de ser primo de Fulano e de Sicrano, mas se não me orgulhar, serei seu primo da mesma forma. Mas meus amores e minhas amizades, estas sim eu escolho, (como escolho também as minhas antipatias e minhas inimizades). De maneira que tais relações deliberadas caracterizam muito mais minha personalidade que os meus primos, (por irmãos que sejam). A nobre sentença que inicia o presente artigo deve referir-se a tais relações deliberadas, sob pena de ter sentido contrário ao pretendido pelos seus autores.

Não exageremos. Embora não tenha eu escolhido meus primos-irmãos, não posso negar o fato óbvio que me pareço com eles. Há algo que me une com meus primos-irmãos, não apenas o forte elo de sangue, mas também o elo ainda mais forte de tradição e cultura. De maneira que até quando escolho meus amigos - com exclusão dos meus primos-irmãos - faço-o de uma forma típica para meus primos - irmãos recusados por mim enquanto amigos. Que é isto que me une tão fortemente a eles?

Minha condição humana. Somos, meus primos-irmãos e eu, resultado de fatores biológicos, culturais e sociais semelhantes. Dai a semelhança que nos une. Mas que implica isto? Acaso implica que devo unir-me ainda mais a eles deliberadamente? "Suum cuique?" De forma nenhuma. Viver humanamente é procurar alterar-se. Assumindo embora a condição na qual me encontro, procurar modificar tal condição e procurar modificar-se a si próprio em tal tarefa. Esta é a dignidade humana: ser condicionado, mas saber disto e não aceitá-lo.
Na medida na qual consigo superar a condição que me determina, rompo a relação que me liga a meus primos-irmãos e estabeleço outras. Deixo sempre mais de me parecer com meus primos-irmãos, e passo a ser sempre eu mesmo. As primeiras relações que então estabeleço na minha liberdade são o sentido da nobre sentença que citei no começo.

Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" 25/02/1972

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