terça-feira, 14 de outubro de 2008

O elo perdido da comunicação

Na situação imediatamente anterior à atual revolução das comunicações era possível distinguir três níveis comunicacionais na sociedade ocidental avançada. Sob critério temático, o nível superior constituía a cultura "universal", o médio a cultura "popular". Sob o critério dos códigos o nível superior se caracterizava por símbolos que eram relativamente bem convencionados (como o das ciências ou o das artes da elite), o nível médio por símbolos cuja codificação deliberada tinha caldo no esquecimento (os das ditas "línguas nacionais"), e o nível básico se caracterizava por símbolos jamais deliberadamente codificados (como eram os símbolos dos dialéticos, trajes ou danças típicas). Mas é sob critério estrutural que a distinção entre os níveis oferece o maior interesse.

O nível superior tinha a estrutura em árvore - círculos dialógicos ligados entre si por discursos ramificados. O nível médio tinha a estrutura piramidal - discurso retransmitido por relatos hierarquicamente organizados. E o nível básico tinha a estrutura de mosaico (círculos dialógicos mutuamente isolados). Exemplos de árvores são, por exemplo, universidade, laboratórios, tendências em pinturas. Exemplos de pirâmides: escolas medias, exércitos, partidos. Exemplos de mosaicos seriam aldeias, seitas, tribos. A comunicação em árvore se caracteriza pela progressiva produção de informação nova, a piramidal pela preservação da informação disponível, a de mosaico pela distribuição dialógica de informação disponível. A dinâmica da árvore é a da historia, linearmente progressiva. A dinâmica da pirâmide é autoritária, verticalmente conservadora e a dinâmica do mosaico é pré-histórica, circularmente participatória.

A sociedade ocidental anterior a atual revolução integrava os seus três níveis de comunicação da seguinte maneira: o nível superior elaborava informação nova, o nível médio a transmitia em direção ao nível básico, e este a integrava na memória da sociedade. Tal descrição da dinâmica da comunicação é esquemática, porque despreza o feedback complexo entre os três níveis, mas por ser esquemática facilita a compreensão da cena. Em tal cena cabia a classe média, papel relativamente bem definido. Ela era portadora das várias culturas nacionais, traduzia as informações elaboradas pelo nível superior nos códigos das línguas nacionais, e as transmitia, assim transcodificadas, para o nível básico da sociedade. Foi neste sentido que a cultura ocidental era histórica como um todo, embora apenas o nível superior tivesse participado ativamente no processo da elaboração de informação nova. A classe média constituía o canal pelo qual a história informava o povo.

Tal papel desempenhado pela classe média lhe conforta caráter específico no contexto da sociedade. Era conservadora com relação ao nível superior (conservava as informações elaboradas), e revolucionária com relação ao nível básico (transmitia informação nova). Era apêndice do nível superior (servia-lhe de canal de transição), e autoritária com relação ao nível básico (constituía pirâmide da qual o último receptor era o povo). A posição da classe media no contexto da sociedade era, pois ambígua, era receptora de informações em cuja elaboração não participava, e era informadora do nível popular no qual tampouco participava. Isto explica a ideologilização, por vezes violenta, o seu nacionalismo, a sua dupla moral, o seu engajamento em movimentos revolucionários que constituiriam ameaça á sua própria sobrevivência. Em tal sentido o papel da classe média era o de suicida.

A atual revolução nas comunicações transformou a cena descrita. Consiste ela, fundamentalmente, na introdução de estrutura nova: a do anfiteatro. É ela estrutura que irradia as informações elaboradas no nível superior diretamente em direção da base da sociedade. Exemplos de anfiteatros: rádio, tevê, cinema. A árvore da comunicação superior está, doravante, ligada diretamente aos anfiteatros que funcionam como canais e como trans codificadores. Traduzem as informações novas em códigos a.D. Ho. elaboradas pelo próprio nível superior, e as transmitem rumo á base da sociedade.

O resultado é a destruição da cultura popular e sua substituição pela cultura da massa. A estrutura de mosaico se dilui, os diálogos circularem cessam, e a base da sociedade se transforma em massa passiva agitada pelas informações que sobre ela incidem a partir dos anfiteatros. Tal agitada, chamada ""opinião publica"", serve de feedback para os programadores dos anfiteatros, os quais são participantes da comunicação em árvore do nível superior.

Em tal situação, o nível médio da comunicação, a classe média, deixa de desempenhar papel funcional, e passa a ser anacronismo. Os atuais remanescentes da classe média são testemunhas de situação superada pela revolução em comunicação exatamente como os são os remanescentes da antiga popular, espécie de folclore. O fato é, por certo, encoberto por densa neblina ideológica, espalhada pelos anfiteatros, mas análises, como aqui esboça, podem contribuir para a dissolução de tais neblinas. Em suma, na situação atual a classe média não mais desempenha papel comunicológico essencial para a manutenção da sociedade, e deverá, mais cedo ou mais tarde, mergulhar, na cultura da massa. A situação atual exige somente dois níveis de comunicação, o dos elaboradores e dos programadores de informação, e dos receptores e programadores.

Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" 31/08/1980

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